sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A bula do Viagra (muito bom)...

- Vai, Horácio. Toma logo. - Eu não tomo nada sem antes ler a bula. Cadê meus óculos? - Pendurados no seu pescoço. - Isso é ridículo, Maria Helena. Ridículo!!! - Então, todos os homens da sua idade são ridículos. Porque todos estão tomando! E não me puxa esse lençol, fazendo o favor. Olha aí o bololô que você me faz nas cobertas! - A humanidade conseguiu crescer e se multiplicar durante milênios sem isso. Nós dois crescemos e nos multiplicamos sem isso. Taí o Pedro Paulo, taí o Zé Augusto que não me deixam mentir. Fora aquele aborto que você fez. - Horácio, eu não vou discutir isso com você agora.Toma logo esse negócio. - Isso aqui faz mal pro coração, sabia? Um monte de gente já morreu tentando dar uma trepadinha farmacêutica. - Foi por uma boa causa. E não faz mal coisa nenhuma. Só pra quem é cardíaco e toma remédio. Você não é cardíaco. Nem coração você tem mais. - Não começa, Maria Helena, não começa. - Pode ficar sossegado que você não vai morrer do coração por causa dessa pilulinha. Eu vi num programa do GNT um velhinho de 92 anos que toma isso todo dia. - Sério? - Preciso de sexo, Horácio. - Mas hoje é segunda, Maria Helena... - Quero trepar!!! Foder!!! Ser comida por um macho de pau duro!!! - Francamente, Maria Helena, que boca. Parece que saiu da zona. - Quero ser penetrada, quero gozar. - O sexo é uma ditadura, Maria Helena A gente tá na idade de se livrar dela. - Saudades da dita dura. Olha só, você me fez fazer um trocadilho de merda. - Além do mais, Maria Helena, nós já tivemos um número mais do que suficiente de relações sexuais na vida, por qualquer padrão de referência, nacional ou estrangeiro. A quantidade de esperma que eu já gastei nesses anos todos com você dava pra encher a piscina aqui do prédio. - Com o esperma que você ordenhou manualmente, talvez. O que o senhor gastou comigo não daria nem pra encher o bidê aqui de casa. Um penico, talvez. Até a metade. - Maria Helena... - E faz quase um ano que não pinga uma gota lá dentro! - Sossega o facho, mulher. Vai fazer ioga, tai chi chuan. Já ouviu falar em feng shui, bonsai, shiatsu ? Arranja um cachorro. Quer um cachorro? Um salsichinha? - Quero um salsichão, Horácio. Olha aí: outra piadinha infame. - É porque você está com idéia fixa nessa porcaria. - Que porcaria? - O sexo, Maria Helena, o sexo. - Sabe o que mais que deu naquele programa sobre sexo, Horácio? - Não estou interessado. - Deu que as mulheres com vida sexual ativa têm muito menos chance de ter câncer. É científico. - Come brócolis que é a mesma coisa, Maria Helena. Protege contra tudo que é câncer. Também é científico, sabia? E puxado no azeite, com alho, fica uma delícia. - A que ponto chegamos, Horácio. Eu falando de sexo e você me vem com brócolis puxado no azeite! - Com alho. - Faça-me o favor, Horácio. - Maria Helena, escuta aqui, você já tem 50 anos, minha filha, dois filhos adultos, já tirou um ovário, já... - Não fiz 50 ainda. Não vem não. E o que é que filho e ovário têm a ver com sexo? - Maria Helena, me escuta. Depois de uma certa idade as mulheres não precisam mais de sexo. - Ah, não? Quem decidiu isso? - Sexo nessa idade é pras imaturas. Pras deslumbradas, pras iludidas que não sabem envelhecer com dignidade. - Prefiro envelhecer com orgasmos. - O que é que o Freud não diria de você, Maria Helena. - E de você, então, Horácio? No mínimo, que você virou gay depois de velho. Boiola. - Maria Helena! Faça-me o favor. Eu tenho que ouvir isso na minha própria casa, na minha própria cama,diante da minha própria televisão? - Aliás, gay gosta de trepar. É o que eles mais gostam de fazer. Você virou outra coisa, sei lá o quê. Um pingüim de geladeira, talvez. - Maria Helena, dá um tempo, tá? Tenho mais o que fazer. - Fazer? Essa é boa. O que é que um bancário aposentado com salário integral tem pra fazer na vida, posso saber? Ficar jogando bilhar a tarde inteira? - Sem comentários, Maria Helena, sem comentários. - Tá bom, sem comentários. Bota os óculos e lê duma vez essa bendita bula. - Só que precisa de dois óculos pra ler isso. Olha só o tamanhico da letra. Se é um negócio pra velho, deviam botar uma letra bem grande. Pelo menos isso. - Vira o foco do abajur para cá... assim... melhorou? - Abaixa essa televisão também. Não consigo me concentrar ouvindo novela. Mais. Mais um pouco. - Pronto, patrãozinho. Sem som. Vai, lê duma vez. - O princípio ativo do medicamento é o citrato de sildenafil. - Sei. - Veículos excipientes: celulose microcristalina... - Celulose vem da madeira. Pau, portanto. Bom sinal. - Onde foi parar a sua pouca educação, Maria Helena? - Vai lendo, Horácio. Depois conversamos sobre a minha pouca educação... - Cros... camelose sádica. Croscamelose. Castrepa, Maria Helena. Me recuso a tomar um troço com esse nome. Deve ser alguma secreção de camelo. Se não for coisa pior. - Não é camelose. Num tá vendo aí? É caRmelose. Deve ser algum adoçante artificial. Pro seu pau ficar doce, meu bem. - Putz. Só rindo mesmo. A menopausa acabou com a sua lucidez, Maria Helena. - Troco toda a lucidez do mundo por um pau tinindo de tesão por mim. - Absurdo, absurdo. - Que mais, que mais, Horácio? - Dióxido de titânio. - Ah, titânio. Pro negócio ficar bem duro. - índigo carmim... - índigo? Deve ser o que dá o azul da pilulinha. - Será que esse negócio não vai deixar o meu pau azul, Maria Helena? - E daí, se deixar? Você não sai por aí exibindo o seu pênis, que eu saiba. Ou sai? - Mas, e se eu for a um mictório público? o que é que o cara ao lado não vai pensar do meu pinto azul? - Diz que você é um alienígena, ora bolas. Que o seu corpo está pouco a pouco se adaptando à Terra, que ainda faltam alguns detalhes. Ou explica que você é um nobre, de sangue e pinto azul. Ou não diz nada, ora bolas. Acaba de mijar, guarda o pinto azul e vai embora, pô. - Escuta. Agora vem a parte que explica como esse petardo funciona. - Isso. Quero ver esse petardo funcionando direitinho. - Presta atenção. 'O óxido nítrico, responsável pela ereção do pênis,ativa a enzima guanilato ciclase, que, por sua vez, induz um aumento dos níveis de monofosfato de guanosina cíclico, produzindo um relaxamento da musculatura lisa dos corpos cavernosos do pênis e permitindo assim o influxo de sangue:' Cacete. Corpos cavernosos Já pensou, Maria Helena? Corpos cavernosos sendo inundados de sangue? Puro Zé do Caixão. - Corpo cavernoso só pode ser herança do homem das cavernas. Vocês homens evoluem muito lentamente. - Pára de viajar, Maria Helena. Parece que fumou maconha. - Não era má idéia. Pra relaxar. Vou roubar do Pedro Paulo. Eu sei onde ele esconde. Podíamos fumar juntos. - Eu já tô relaxado. Tô até com sono, pra falar a verdade. - Lê, lê, lê, lê aí. Você já dormiu tudo a que tinha direito nessa vida. - Vou ler. 'Todavia, o sildenafil não exerce um efeito relaxante diretamente sobre os corpos cavernosos..:' - Não? - Não, Maria Helena. Ele apenas 'aumenta o efeito relaxante do óxido nítrico através da inibição da fosfodiesterase-**5, a** qual' - veja bem, Maria Helena, veja bem - 'a qual é a responsável, pela degradação do monofosfato de guanosina cíclico no corpo cavernoso?'. Ouviu isso? ** - Degradação, Maria Helena. Dentro dos meus próprios corpos cavernosos. Degradante... - Degradante é pau mole. - Olha o nível, Maria Helena! Olha o nível!! Vamos ver os efeitos colaterais. Olha lá: dor de cabeça. Você sabe muito bem que se tem uma coisa que eu não suporto na vida é dor de cabeça. - Na cultura judaico-cristã é assim mesmo, Horácio. Pra cabeça de baixo gozar, a de cima tem que padecer. - Não me venha com essa sua erudição de internet, Maria Helena. Estamos off-line. - Deixa de ser criança, Horácio. Se der dor de cabeça você toma um Tylenol, reza uma ave-maria, canta o 'Hava Naguila' que passa. - Outro efeito colateral: rubor. Rá, rá. Vou ficar com cara de quê, Maria Helena? De camarão no espeto? - Se for camarão com espeto, tá ótimo. Que mais, que mais? - Enjôos. Ó céus! Enjôos... - Você sempre foi um tipo enjoado, Horácio. Ninguém vai notar a diferença. - Vamos ver o que mais... hum.. dispepsia. Que lindo. Vou trepar arrotando na sua cara. - Você me come por trás. Arrota na minha nuca. - É brincadeira... É essa a sua idéia de amor, Maria Helena? - Isso não tem nada a ver com amor, Horácio. Já disse: é profilaxia contra o câncer. E arrotar, você já arrota mesmo o dia inteiro, sem a menor cerimônia. Na mesa, na sala, em qualquer lugar. - Como se você não arrotasse, Maria Helena. - Mas não fico trombeteando os meus arrotos. Isso é coisa de machão broxa. Em vez de trepar com a esposa, fica arrotando alto pra se sentir o cara do pedaço. - Como você é simplória, Maria Helena, como você é... menor. Desculpe, mas acho que o seu cérebro anda encolhendo, sabia? Ou mofando. Ou as duas coisas. - Vai, Horácio, chega de conversa mole. E de pau idem. Pula os efeitos colaterais. - Como , 'pula os efeitos colaterais'? É porque não é você quem vai tomar essa meleca, né? Vou ler até o fim. Os efeitos colaterais são a parte mais importante. Olha lá: gases. Que é que tá rindo aí? - Do efeito cu-lateral. Desculpa. Esse foi de propósito. Não agüentei... - Admiro seu humor refinado, Maria Helena. Torna você uma mulher tão mais sedutora, sabia? - Obrigada, Horácio.'Agora, quanto aos seus gases, pode relaxar o esfíncter, meu filho. Numa boa. Tô tão acostumada que até sinto falta quando estou sozinha. Sério. Fico pensando: Ah, se o Horácio estivesse aqui agora pra soltar uma bufa de feijoada com cerveja na minha cara... - Maria Helena, qualquer dia você vai ganhar o Oscar da vulgaridade universal. - Vou dedicar a você. - Vamos ver que mais temos aqui em matéria de efeitos colaterais. Ah! Congestão nasal. Que gracinha. Vou ficar fanho, que nem o Donald. Qüém,qüém. Qüém. - Um pateta com voz de pato. Perfeito. - Ridículo. Absurdo. Idiota. - Ridículo você já é, Horácio. E quem não é? Além do mais, é só calar a boca que você não fica fanho. - Ah, tá. E se eu quiser falar alguma coisa na hora? - Você não diz nada de interessante há mais de dez anos, Horácio. Vai dizer justo na hora de trepar? - Eu não nasci para dizer coisas interessantes a você, Maria Helena. - Já percebi. - Hum. Ouve só; diarréia! - Quê? - É outro efeito colateral dessa bomba aqui. Fala sério, Maria Helena. Isto aqui é um veneno. Não sei como eles vendem sem receita. - Deixa de ser pueril, Horácio. Magina se alguém vai ter todos os efeitos colaterais ao mesmo tempo. No máximo um ou dois. - A caganeira e os arrotos, por exemplo? Ou a ânsia de vômito e os gases? - Faz um cocozinho antes. Pra esvaziar! Agora, Horácio. Eu espero. - Eu não estou com vontade de fazer cocozinho nenhum, Maria Helena. Faça-me o favor. E olha aqui, mais um efeito colateral: visão turva. - Você bota os seus óculos de leitura. E que tanto você quer ver que já não viu? - Maria Helena, você não entendeu? Essa droga perturba seriamente a visão. Vou ficar cego por sei lá quantas horas, quantos dias. E tudo por causa de uma reles trepadinha? E se a minha visão não voltar? Vou andar de bengala branca pro resto da vida? - Pode deixar que eu guio a sua bengala, Horácio. Olha, pensa no lado bom da cegueira: você vai poder me imaginar 20 anos mais moça. Trinta, se quiser. - Maria Helena, desisto. Não vou tomar essa porcaria e tá acabado. - Dá aqui essa cartela, Horácio. Abre a boca. Pronto. Engole. Olha a água aqui. Isso. Que foi? Engasgou, amor?! Tosse pra lá,ô! Me borrifou toda! Que nojo! Quer que bata nas suas costas? Ai, meu Deus! Horácio? Você está bem ? Respira fundo! Isso, isso... E aí, amor? Melhorou? Morrer afogado num copo d'água ia ser idiota demais, até prum cara como você. - Arrr! E com essa pílula monstruosa entalada na garganta, ainda por cima! Ufff! Me dá mais água. - Quanto tempo isso aí demora pra fazer efeito? - Isso aí o quê? - A pílula, Horácio, a pílula. - E eu sei lá? - Vê na bula, Horácio. - Hum... tá aqui: 30 minutos. - Ótimo. Dá tempo de ver o fim da minha novela.

(Luis Fernando Veríssimo, CLARO!!)

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